As Palavras Fugiram: Contos de Quinta #37

O conto de hoje é da Patrícia Ananias da Silva, para conferir mais entre no site Contos Fantasticos.


Maldição


Não sei que dia datava, mas isso não importa. O fato é que eu estava perambulando pelas ruas de Londres, macetando o chão com meu tempo livre e minha imperiosa vontade de nada fazer. Como costumeiro, meus pés me guiaram até a vitrine da livraria mais antiga de nosso bairro. Meu pequeno paraíso sujo cheirando a pó estava aberto e exibia seus preciosos livros reluzentes no vidro engordurado, embaçado e sussurrante. Eu tinha desejos, mas não tinha dinheiro. Não agora, e não ali. Ia me despedindo do altar, quando escuto meu nome. Alguém me chamava, voltei-me e sorri diante da figura de Dom Amâncio, o dono da livraria.

Não me recordo sobre o que conversamos, talvez discutimos Allan Poe, Camões ou Kafka, que eu acabara de conhecer e me deslumbrar. O velho livreiro tinha um apreço devastador pelo meu coração jovem e curioso, talvez por que minhas mãos eram as únicas que bagunçavam suas prateleiras, desordenando livros e coleções inteiras, numa pressa de conhecimento e verdades. Desde muito cedo eu amava, com mais raiva, a complexidade de um livro do que brincadeiras de rua, de bola e botão. Mamãe dizia que tanta cultura não era saudável, “antes de tudo, ser criança” ela gritava sempre que me encontrava enterrado até o pescoço em uma história. Mas eu sorria e sabia que tinha a chave de todas as maravilhas e segurava meus preciosos livros como se guardasse um segredo. E então a surpresa daquele dia, como um escorpião que fascina e mata, apresentou-se. Um livro. Um velho e tranqüilo livro, que ele depositou em minhas mãos como um presente. Creio que meu coração vibrou intensamente naquele momento, pois até hoje quando recordo, ele ferve. Agradeci impetuosamente e voltei para casa segurando-o junto ao coração. Era tarde.

Naquela noite, abri as imensas janelas do meu quarto para que o ar refrescasse, pois o calor sufocava, parecia-me estar dentro de um imenso caldeirão fervente. Ironicamente o sono escorregou na noite, junto ao vento que não entrava, apenas passava pela minha janela sorrindo e brincando. Deitei-me e esperei adormecer. Olhei para a palma das mãos sem interesse. Susto. Percebi com perplexidade que elas estavam negras, uma tinta leitosa e mal cheirosa escorria das minhas unhas. Corri ao banheiro e esfreguei-as com tamanha força que elas ardiam, olhei-me no espelho tentando recordar onde poderia tê-las sujado. O livro. Voltei ao quarto e encontrei-o em cima da cama, estranho, jurava tê-lo guardado na cômoda. Virei e revirei-o várias vezes para ver se de sua capa tinha-se desprendido tinta. Ele estava intacto.
Desistindo da procura, tentei o sono. Minha casa dormia, e o silêncio reinava absoluto. O cenário era propício, apanhei o livro e comecei a ler.

Terminava a segunda página quando senti um formigamento nas mãos e fechei os olhos por um instante, rendendo-me a canseira que me tomava. Súbito, o livro me mordeu. Mordeu literalmente. Gritei! Gritei na agonia da dor, tentando retirar a mão direita de dentro das páginas. Ardia e meus olhos ameaçavam chover. Entra mamãe num susto visível, corre até mim e arregala os olhos com a visão. Com muito custo puxou minha mão e faltou-lhe ar por um momento. Eu havia perdido dois dos meus dedos e o sangue molhava os lençóis, penetrava no livro. Não sentia mais nada...estava entorpecido.
Acordei quando o sol já existia, a mão enfaixada, os lençóis trocados e a casa cheia de vozes. Parecia-me ter corrido por várias horas, estava suado. Passei toda a tarde na cama, volta e meia aparecia alguém para me ver, um ou dois dos empregados me espreitava por uma fresta da porta, todos me encaravam com preocupação e assombro. Olhei para a faixa branca que abraçava minha mão e não contive um suspiro, estranho não ter os dedos.

Assim que a noite chegou, senti que começava a ficar febril, uma quentura atravessava meu corpo, e princípios de delírios me atormentavam. Mamãe veio ver-me e ficou estática aos pés da minha cama, sem poder chegar mais perto. Estava pálida e me olhava como se visse através de mim, como se não me enxergasse ou não me reconhecesse. Dessas noites lembro muito pouco, ora eu estava completamente consciente, ora eu nem sei o que fazia. Curiosamente lembro-me bem de fitar por horas completas com sincera devoção a lâmpada que adornava e iluminava meu quarto, e então quando o relógio batia onze horas da noite, eu lhe mandava um beijo, sorria e adormecia. Comportamento totalmente involuntário...e sem freios.
Mamãe não tinha mais paz, vivia constantemente ao meu lado e só parou de me vigiar durante o dia, quando percebeu que ao sol eu era inofensivo. O perigo morava na noite. Quando a cor negra estampava o céu, a história que eu havia começado continuava, se desenvolvia e era real. Cada noite era uma página virada, um novo acontecimento que existia ali, no meu quarto, dentro de mim. Muitas vezes acordava do meu torpor machucado, sangrando ou iluminado, sorrindo.

Dom Amâncio visitou-me no terceiro dia da minha doença, levou-me maçãs e parecendo-lhe que eu dormia iniciou um diálogo sussurrado com mamãe. Minha pobre mãe chorava copiosamente, e o livreiro procurava consolá-la sem efeito algum. Também nunca ouvira falar de livros que mordiam, era realmente estranho o que me acontecia e concordava, não sem antes coçar nervosamente a cabeça, que eu estava infectado pela história. E não, infelizmente, não sabia o que fazer, não podia ajudar.

Antes de deixar o quarto, mamãe perguntou-lhe o que havia naquele livro. Ele pareceu hesitar e abaixando ainda mais a voz, disse-lhe que era um livro de aventuras. Aventuras? Ela ficou assombrada. Quais aventuras? Dom Amâncio deu de ombros, não sabia, nunca havia lido tal livro. Cheio de culpa por me iniciar naquele tormento ele sempre aparecia, mas nunca mais me presenteou e nunca mais leu.

Papai quase nunca estava em casa. Cuidava dos negócios da fazenda e vivia em viagens de compras, vendas, trocas e descobertas. Quando isto me aconteceu estava na Índia e não poderia me ver tão breve. Mamãe ficava ainda mais nervosa e preocupada, convocava amigos, médicos e até padres para me ver. Eram visitas melancólicas, pois não compreendiam a situação e afirmavam que eu logo seria liberto, qualquer que fosse meu mal. Iam embora ainda mais rápidos do que tinham vindo e a deixava cada vez mais temerosa, de que talvez, infelizmente, a loucura havia me possuído.

Dormia quase todo o dia, pois as noites me deixavam exausto. Perdi inúmeras aulas na escola e nenhum dos meus poucos amigos vieram me visitar, convencidos pelos rumores de que eu estava paranóico e que a doença era altamente contagiosa. Passava horas em silêncio, e minha imaginação conversava comigo, instruía-me, mostrava-me outros mundos, onde eu entrava, descobria e vivia. Numa manhã acordei sangrando muito, gritei várias vezes até que minha salvadora, minha mamãe, viesse até meu quarto, cansada, com profundas olheiras e já totalmente desanimada, acostumada com meus surtos noturnos. Só alarmou-se ao ver meu peito ensangüentado, sôfrego e dilacerado por uma espada invisível. Chamaram-se os médicos e rapidamente fizeram os pontos que me salvaram a vida.

Durante toda a operação eu sorria, gargalhava tomado por uma súbita alegria, que só então, ao raiar do dia vim a conhecer a origem. Descobrira, não sei como, que o livro estava no fim e a poucas páginas para acabar meu martírio, a felicidade lavava minha carne.

Logo, durante aquele dia sonâmbulo, tomou-me a alma um lamento, um choro, uma convulsão ardida, desesperei-me sem intenção e tornei-me furioso comigo mesmo. Temendo que o poder da história conseguira me alcançar mesmo a luz do sol, fiquei afoito e subitamente me acalmei. Não, eu ainda tinha o controle dos meus dias. Percebi então que faltava algo...já começara a faltar. Como quando acostumamos tanto com uma determinada coisa, eu não queria perder a história, eu não queria deixá-la, ela era minha tanto quanto eu lhe pertencia. Levantei, com esforço, pois estava terrivelmente fraco, tropecei até a cômoda, e vasculhei a última gaveta onde eu secretamente escondera o maldito livro. Com a respiração rápida e curta, quase sem intervalos, eu procurei sua última página. Duas lágrimas preencheram meus olhos quando encontrei a pagina em branco, sem nenhum resquício de letra.

Voltei a cama desanimado, os braços pendendo frouxamente ao lado do corpo. Lembro-me de ver meu reflexo no espelho, parecia um fantasma inchado. Adormeci.

Num lampejo, tão rápido como me tinha possuído, a história acabou. Todas as páginas tão bem contadas e escritas deixaram minha alma em paz. Voltei a viver normalmente, reconciliei-me com a escola, lancei-me aos amigos, as brincadeiras, aos amores que sucederam, atrevendo-me a ler como antes, surpreendendo-me com a realidade aqui e ali, sendo carne, sendo homem. E tudo aquilo me ficou como um sonho, uma viagem, uma náusea, feito experiências das quais não temos o controle do entendimento.

Bem, o passado me cansa e eu já estou velho, deixe-me ir. Agora vou agarrar o sono, já são onze horas, assopro um beijo pra luz e adormeço.




E aí, o que acharam?
Contos de quinta é um espaço para divulgação de contos, poesias, textos em geral de blogueiros e escritores, (talvez um dia eu publique um conto meu, quem sabe? rsrs), Se você quiser ver seu texto publicado aqui é só me contatar por email clicando aqui ou enviando um email direto para aspalavrasfugiram@hotmail.com

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